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Menino nepalês de nove anos "vítima de linchamento" em escola de Lisboa

14 mai, 2024 - 06:00 • João Carlos Malta

A diretora executiva de uma instituição da Igreja, o Centro Padre Alves Correia, diz que os agressores, também menores, proferiram frases racistas e xenófobas durante as agressões. Dois meses depois, a vítima ainda acorda à noite com pesadelos e tem medo de ir à escola. Há 11 dias, o Porto foi palco de agressões violentas a imigrantes e, em Lisboa, na freguesia mais multicultural do país teme-se também que aconteçam situações semelhantes.

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Um menino de nove anos, de nacionalidade nepalesa, foi agredido com violência por outros colegas numa escola de Lisboa, no início deste ano. A denúncia é feita à Renascença pela diretora executiva de uma instituição da igreja, o Centro Padre Alves Correia (CEPAC), e Ana Mansoa considera que as motivações dos outros menores foram xenófobas e racistas.

O caso ocorreu há cerca de dois meses. “O filho de uma senhora acompanhada pelo CEPAC, que tem nove anos, e que é uma criança nepalesa, foi vítima de linchamento no contexto escolar por parte dos colegas. Foi filmado e divulgado nos grupos do WhatsApp das crianças”, descreve Ana Mansoa que prefere não divulgar o agrupamento em que tudo aconteceu uma vez que a família ainda recorda a sucedido com medo e apreensão.

Os vídeos das agressões, conta a mesma fonte à Renascença, já não estão disponíveis na aplicação.

Segundo a mesma responsável, o ataque foi feito por cinco colegas da vítima, sendo que um dos agressores foi mais interventivo do que os outros nas agressões físicas, ao qual se juntou um sexto elemento que filmou as agressões para depois serem partilhados nas redes sociais.

“Foi muito grave e com um impacto muito grande, não só no bem-estar físico, mas também emocional e psicológico desta família, que acabou por pedir transferência da escola e acabamos por conseguir concretizá-la para a segurança da criança”, avança a mesma fonte.

Ana Mansoa diz que o menino ficou com “hematomas pelo corpo todo”, “feridas abertas”. “Acabaram por ser tratadas pela mãe porque teve medo e quis evitar ir a um hospital ou centro de saúde. Isto acaba por ter estas consequências, estas agressões físicas, para estas pessoas, acabam por lhes dar a perceção de que não são bem-vindas, não são bem tratadas e não são bem acolhidas”, relata.

E conclui: “Esta mãe, por medo, acabou por preservar o filho em casa e tratar dele”. Não foi apresentada queixa às autoridades, assegura Ana Mansoa, “por medo” dos pais.

Em relação ao menor de nove anos, as sequelas psicológicas continuam. “O menino acorda de noite com pesadelos e a chorar, não quer ir para a escola”, diz a diretora executiva da instituição da Igreja, Centro Padre Alves Correia, que pertence aos Missionários do Espírito Santo, uma congregação missionária que trabalha sobretudo em África.

"Vai para a tua terra"

Esta família nepalesa está há dois anos em Portugal, chegou ao país no contexto de asilo, e o casal trabalha no setor da restauração. “Estão integrados socialmente, têm rendimento fixo e a situação contributiva regularizada”, detalha.

Em relação às motivações do ataque, Ana Mansoa diz que no filme há palavras racistas e xenófobas das crianças agressoras em relação à vítima.

Ana diz que a criança foi agredida também verbalmente com “nomes que não posso proferir”, a que se somaram frases como “vai para a tua terra”, “tu não és daqui”, “não queremos nada contigo” e “mais coisas que não posso dizer”.

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"Tem nove anos, e que é uma criança nepalesa, foi vítima de linchamento no contexto escolar por parte dos colegas. Foi filmado e divulgado nos grupos do WhatsApp das crianças" Ana Mansoa, diretora executiva da instituição da Igreja, Centro Padre Alves Correia.

As consequências para os agressores identificados no vídeo, segundo esta responsável, resumiram-se a “uma delas ser suspensa por três dias”.

Mansoa critica a forma como o caso foi tratado em contexto escolar. “Foi muito insuficiente para a gravidade dos factos. Tanto assim é, que a família não se sentiu segura na escola e pediu transferência”, sinaliza.

“Foi uma abordagem muito conservadora. Foi um discurso que pôs o enfoque em serem crianças, não poderem valorizar estes comportamentos e que a mesma tinha sido uma situação isolada. A própria escola não denunciou o caso. A meu ver isto é grave”, afirma.

A diretora executiva da instituição da Igreja, Centro Padre Alves Correia, considera que devido a casos como este que as situações de racismo e xenofobia vão escalando. “As pessoas vão-se sentindo não acolhidas, num país que já é o delas”, lamenta.

A denúncia deste caso surge depois de, no Porto, no início de maio, um grupo de seis homens encapuzados, armados com bastões, facas e uma arma de fogo, ter invadido a casa onde vive uma dezena de imigrantes argelinos, além de um venezuelano, para os espancar, destruir o recheio da habitação e proferir insultos racistas.

Durante a meia hora de terror, uma das vítimas saltou pela janela do primeiro andar para fugir das agressões.

Repetição de ataques cada vez mais provável

Ana Mansoa diz que a repetição destes casos em Lisboa é cada vez mais provável. A responsável sublinha que nos “últimos meses, tem havido um aumento dos relatos das famílias" que a associação acompanha e “um maior sentimento de medo e de insegurança”. “A verdade é que não é de agora que temos esses relatos quer seja em contexto habitacional, quer seja em contexto escolar. Temos a perceção de que está a aumentar”, afiança.

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"Ficou com hematomas pelo corpo todo, feridas abertas. Acabaram por ser tratadas pela mãe porque esta teve medo e quis evitar ir a um hospital e centro de saúde", Ana Mansoa, diretora executiva da instituição da Igreja, Centro Padre Alves Correia.

O Centro Padre Alves Correia está junto desta comunidade a tentar dar ferramentas para que possam lidar com situações de violência, intolerância e xenofobia. “Temos medo de que o que aconteceu no Porto possa acontecer noutros contextos pelo ambiente social que vivemos”, remata.

Ana Mansoa diz que atualmente em Lisboa a xenofobia e o racismo se manifestam mais em “ameaças”, mas há relatos “de agressões na via pública e nas escolas” por questões relacionadas com a nacionalidade.

A especialista no contato com populações migrantes trabalha com estas comunidades há seis anos, relata que estes casos sempre aconteceram, mas eram muito mais esporádicos.

“Sou filha de imigrantes e nunca na minha infância ou na idade adulta tive medo de viver no meu país e, neste momento, em alguns contextos, tenho medo pelas minhas filhas. Em sítios em que passo todos os dias, vejo frases escritas que não via, discursos que antes não eram proferidas de forma tão clara”, remata.

Preocupação na freguesia mais multicultural do país

A presidente da Junta de Freguesia de Arroios, a mais multicultural freguesia em Portugal, diz sentir “preocupação com o aumento da imigração”, mas espera que o ataque racista que ocorreu no Porto “não aconteça” naquele local. Ainda assim confessa: “Estamos preocupados”, diz Madalena Natividade à Renascença.

A autarca classifica o ato no Porto como “uma situação condenável de racismo e desnecessária, mas, acredita, “também foi uma situação imprevisível e pontual”.

Madalena Natividade afirma que pela quantidade de nacionalidades, religiões e culturas que convivem em Arroios, já há um hábito de “viver com comunidades diferentes e respeitar outras culturas e religiões”. No entanto, sublinha, não pode dizer que "estes casos imprevisíveis e pontuais não aconteçam”.

Em relação ao impacto da imigração na freguesia, a presidente da Junta de Arroios, militante do CDS-PP, diz que o aumento muito rápido da chegada de pessoas estrangeiras está a ter “um impacto negativo” naquele local e defende que “tem de defender também os interesses" de quem ali vive e de quem ali trabalha.

“A minha luta é salvaguardar os direitos de todos”, conclui. “Os imigrantes têm direitos, os moradores também têm e os direitos deles não se sobrepõem aos direitos dos outros.”.

Natividade sublinha que tem “de defender também o espaço público, a segurança e a higiene na freguesia”, o que, “com esta sobrelotação de pessoas é muito mais complicado”, confidencia.

A partilha do espaço público

Mas porque é que a chegada de imigrantes compromete a saúde e higiene do espaço púbico? Madalena Natividade responde que a “imigração é necessária”, mas tem de “haver rigor na entrada de imigrantes” e “humanidade de acolhimento”, algo que “não está a acontecer”.

A presidente dá o exemplo do Jardim dos Anjos, local ocupado por tendas de imigrantes a pernoitar na rua. “Os moradores querem usufruir do espaço público e não há essa possibilidade e eu não posso permitir que as pessoas durmam na rua, ao relento, à chuva e ao frio.”

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"Espero que não aconteça em Arroios, mas claro estamos preocupados", Madalena Natividade, presidente da Junta de Arroios.

E continua a descrever as razões do conflito de interesses que ali estão em evidência. “Os moradores não podem passar ali porque têm uma sensação de insegurança, porque não podem ir à missa.”

E prossegue: “Os miúdos da catequese não podem fazer as atividades da catequese, e as pessoas que moram ali deixam de ter acesso ao espaço porque se está a ocupar os passeios. O espaço público, que é de todos, está ocupado por imigrantes que não estão a ter uma resposta nem humana, nem concreta. Portanto, o que está a falhar aqui é a resposta que não está a ser dada aos imigrantes.”

Madalena Natividade conclui que na base destes problemas que se sentem no terreno está “uma política de imigração ineficiente e, portanto, a consequência são os moradores que ficam restringidos no [acesso] ao espaço público”.

“Não posso permitir que isso continue a acontecer aqui na freguesia e diariamente”, argumenta.

A mesma autarca critica a ação das associações que lidam com os imigrantes na rua. “O meu trabalho é o de proporcionar condições para retirar as pessoas de rua, não é como estas associações, estes grupos ativistas, que andam por aí a defender que o espaço público é de todos, mas também temos que ver que se o espaço público é para todos, também é para os moradores”, argumenta.

“Não se pode só colocar ali tendas e pessoas a dormir ao relento, enquanto os moradores ficam com o lixo e com a sensação de insegurança”, detalha.

Xenofobia e racismo da junta de freguesia?

Para resolver o problema, a presidente da Junta de Arroios diz que no terreno estão diariamente equipas da Câmara Municipal de Lisboa e equipas da Santa Casa. A resolução dos problemas de falta de habitação, afiança, resolvem-se mais facilmente com quem está legal do que nos casos em que os imigrantes estão indocumentados.

No entanto, o problema já detetado há muito tempo no Jardim dos Anjos, naquela freguesia, não está a ser resolvido. A autarca concorda e explica que nos “três últimos meses tem estado a agravar-se, porque têm chegado mais imigrantes, principalmente situações de migrantes em situação irregular, o que vai acumular à situação que já existia”.

Madalena Natividade não receia que a atuação política da junta leve a acusações de racismo e xenofobia, porque, argumenta, ela própria viveu nas ex-colónias portuguesas. “Sei perfeitamente o que é vir para um país diferente e tentar uma integração. Portanto, nesse ponto consigo perfeitamente perceber. Mas também temos de entender que, para a imigração que vem, há regras e temos de nos submeter às regras e às leis do país”, sustenta.

Não tenho problema nenhum nessa questão do racismo e da xenofobia, portanto, estou muito tranquila com as decisões que tomei”, assume.

Em março deste ano, a Junta de Arroios impôs aos estrangeiros que ali moram, oriundos de países extracomunitários, que apresentem título de residência válido, em Portugal, para a obtenção do atestado de residência.

Na altura, a CDU, através de Íris Damião, membro da coligação e responsável pela freguesia de Arroios no âmbito da Direção da Cidade de Lisboa do Partido Comunista Português, defendeu, citada pelo DN, que não era obrigatório ter título de residência: "E, além disso, para conseguir ter título de residência, isso sim, é que é obrigatório ter atestado de residência. Por isso é que esta situação é tão grave.”

Sem o atestado de residência os cidadãos estrangeiros ficam sem poder aceder aos mais variados serviços, como por exemplo inscrever os filhos na escola, pedir o número de identificação fiscal [NIF] ou inscrever-se no Serviço Nacional de Saúde [SNS]. E, como não podem também aceder ao título de residência não podem, portanto, “legalizar a sua situação no nosso país”, reforçou Íris Damião ao mesmo jornal.

A Provedoria de Justiça recebeu uma queixa por discriminação e o anterior governo fala em extrapolação de competências e repudiou decisão da Junta de Arroios.

Notícia atualizada a 16 de maio: inicialmente a notícia estava ilustrada com uma imagem de ambiente escolar genérico, mas que podia ser identificada. Esse estabelecimento de ensino nada tem a ver com o caso da agressão. Assim, e depois de contactada pelo diretor do agrupamento, a Renascença alterou a imagem usada.

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  • Jaime
    15 mai, 2024 Lisboa 23:12
    Engraçado que a escola visada já veio referir que não tem nenhuma criança nepalesa de 9 anos inscrita e o ministério da educação não conhece este caso... É a esquerdalha mentirosa no seu melhor!
  • José
    15 mai, 2024 Porto 09:54
    Significado de Linchamento: Assassinato de um criminoso cometido por uma multidão
  • Ojornalismomorreu
    14 mai, 2024 Realidade 21:17
    Ensinaram-me na escola primária que o jornalismo devia ser isento e os títulos deveriam ser objetivos. Infelizmente estes indivíduos que se denominam jornalistas fazem tudo menos jornalismo.
  • Sara
    14 mai, 2024 Lisboa 11:57
    Não percebo porque é que na mesma página juntam uma notícia de uma agressão a uma criança e as declarações da presidente da Junta de freguesia de Arroios sobre os imigrantes nessa freguesia. Qual é a ligação entre as duas situações?
  • Mario
    14 mai, 2024 Lisboa 10:42
    Os agressores devem ser exemplarmente punidos. . Muitos destes comportamentos ficam a dever-se à onde de novos políticos que cada vez mais incentivam à violência contra os imigrantes.
  • Paula Oliveira
    14 mai, 2024 Coimbra 10:10
    Pergunto eu: Telemóveis, redes sociais de crianças...? Pais culpados, deveriam ser chamados e não haver contemplações. Os miúdos repetem linguagem, atitudes e "opiniões" que se verificam em casa.

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