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Opinião

A revolução de Wenger: ​20 anos dos invencíveis

13 mai, 2024 • Opinião de Afonso Cabral


Na semana em que se celebram os 20 anos daquele campeonato mágico do Arsenal de Henry, Bergkamp e companhia, o treinador e comentador Afonso Cabral recorda o que tanto mudou com Wenger, no campo e na ética de trabalho.

Puffer longo, até aos pés. Fechado, mas não desde o início, primeiro travava-se uma luta entre treinador e presilha. Mãos nos bolsos. Semblante fechado e cabelo grisalho sempre bem cuidado. Assim começavam os jogos do Arsenal, para quem olhasse para a linha lateral.

Durante anos, facilmente se confundiam Arsène Wenger e Arsenal. Foram 22 anos de história partilhada, num percurso que começou com o treinador francês como um absoluto desconhecido e acabou como uma das maiores figuras do futebol inglês da era moderna.

Esta semana assinalam-se 20 anos da maior conquista coletiva da Premier League. Foram 38 jogos sem conhecer a derrota, numa época em que Wenger venceu por 26 vezes, tantas quanto os golos que sofreu em todo o campeonato, e empatou 12 vezes. Venceu por margem confortável e criou o mito dos ‘invincibles’. Até aí e até hoje, mais ninguém teve o privilégio de utilizar durante toda uma temporada da Premier League o escudo de campeão dourado, representativo da época invicta.

Alguns anos antes, em 1996, Wenger chegou a Londres depois de alguns anos repartidos por Nancy, Monaco e Nagoya, no Japão. Lembro que a globalização no futebol não era a de hoje e a chegada de Arsène a Londres tornou-o apenas no segundo estrangeiro da competição, a par de Ruud Gullit. Wenger era então uma espécie de perfeito desconhecido...

O Arsenal era um dos maiores de Inglaterra, mas não vencia o título há cinco anos. Wenger chegou e reformou tudo. Primeiro internamente, com a proibição de bebidas alcoólicas e chocolates a um grupo de jogadores mal habituados, e na cantina proibiu o tão inglês ‘fish and chips’, substituindo-o por refeições mais amigas do atleta, como vegetais cozidos ou carnes brancas grelhadas. Muito habitual hoje em dia, um atentado à cultura desportiva naqueles dias.

Também no treino mudou o paradigma. Substitui o treino aeróbio descontextualizado, como as longas horas na bicicleta ou corrida, que visavam fundamentalmente aumentar a capacidade respiratória do jogador, para um treino específico, com circuitos de passe a promover algo que queria ver em campo, e introduzindo a bola na maior parte dos exercícios físicos, tornando-os específicos às necessidades do jogo.

O futebol inglês era, à data, muito fechado sobre si próprio. O ‘kick and rush’ da génese do ‘jogo inglês’ predominava e o jogo avançava a carvão em terras de sua majestade, quando no resto da Europa já se movia a gasolina.

Wenger introduziu a posse, mantendo a verticalidade. No ano dourado de 2004, o 4-2-3-1 era o sistema mais utilizado, alternado por vezes com o 4-3-3. Com bola, os laterais Lauren e Ashley Cole sobrepunham-se a Pires e Ljungberg, que partindo de extremos procuravam o seu espaço mais dentro do campo. Henry, muitas vezes descaído para a esquerda – quem não se lembra do golo clássico da esquerda para dentro a fazer a bola entrar em arco na malha lateral mais distante? – e Bergkamp a procurar bola entrelinhas, muitas vezes funcionando como terceiro médio. Se o holandês não estivesse no 11, era Edu a entrar para o meio-campo.

Patrick Vieira era um monstro. Atacava as defensivas em condução com uma passada larga assinalável, e tinha um raio de ação espetacular no momento de proteger a baliza. Permitia que os laterais se soltassem na frente sem grandes preocupações, devidamente secundado por Gilberto Silva. A linha defensiva era toda bastante rápida e tinha no guarda-redes Lehmann a experiência para a comandar.

Não será exagerado dizer que este foi dos melhores elencos da Premier League. Tinha qualidade em transição, com Henry a procurar sempre partir da esquerda, tinha mágicos como Pires e sobretudo Bergkamp, e tinha velocistas. Podia passar o jogo com a bola ou sem ela, era igual. Estava quase sempre por cima.

Os ‘Invincibles’ embelezaram o legado de Wenger mas também na competição o francês teve o seu impacto. De apenas dois estrangeiros nos bancos, passámos, de forma gradual, para uma realidade em que predomina o treinador não inglês. Temos de recuar até 1992 e Howard Wilkinson para encontrar um treinador inglês vencedor do troféu. O ego inglês sucumbiu à realização que o forasteiro pode melhorar o seu futebol.

Também na globalização de jogadores Wenger teve algum impacto. Levou para lá muitas jovens promessas francesas, por conhecer bem o mercado, e deu espaço competitivo a jogadores bastante jovens. Foram mais de 120 estreias na Premier League durante os 22 anos de Arsenal.

Mais recentemente, dos alunos do francês, Fàbregas subiu este ano à Serie A, como treinador do Como. Edu faz parte da estrutura do Arsenal, na pasta das contratações, e Henry foi adjunto de Roberto Martínez na Bélgica e treinador principal do Mónaco, ainda que sem grande sucesso, talvez por pedir coisas aos seus avançados que só ele saiba fazer. O eterno ‘14’ está agora nos sub-21 franceses.

A marca de Wenger, não tão explícita ao nível do modelo de jogo como o de um Simeone ou Guardiola, é indelével na forma como a Premier League evoluiu. Arsène roubou, que nem Lupin, o protagonismo aos ingleses e tornou a liga global nos bancos e no campo.

Passados 20 anos, ainda lembramos os ‘invincibles’, lembramos Wenger e lembramos o maior feito na história da Premier League. Alheado dos bancos, a reforma agora fá-la a partir da FIFA, em tópicos de arbitragem.

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